sexta-feira, 29 de setembro de 2006

Terras do Xisto 2006 - Dia 2

23 de Agosto de 2006 – Dia 2
E eis que ao raiar do sol uma bela pintura se levanta por trás de mim, pois ao deitar-me no leito duro do coreto em Fajão não me apercebi da magnífica paisagem que o rodeava. Nada melhor para começar o dia portanto. Hoje é o meu dia de conduzir, pois até agora só conduzi durante a noite. Mas primeiro uma banhoca na piscina de Fajão, de borla como a gente gosta.
Seguimos caminho pela serra do Açor em direcção a Piódão, aldeia que não fazendo parte da rede do xisto, faz parte das aldeias históricas de Portugal. Um caminho deveras penoso que se estende por cerca de trinta quilómetros até chegarmos a um vale onde repousa a aldeia de Piódão. Ao chegarmos à aldeia notamos uma azáfama anormal para este tipo de localidades, ah, mas isto é uma aldeia histórica, com uma projecção a nível nacional e tornada local de turismo local por excelência, não fosse exemplo claro disso a pousada do INATEL à entrada da aldeia. Se por um lado é uma aldeia bonita como qualquer outra das mais belas que visitámos nas terras do xisto, por outro é uma aldeia com uma finalidade, fazer dinheiro. Não é uma aldeia portanto, portanto para observar costumes e tradições perdidas, vidas descomplicadas e ao ritmo da rotação do planeta. É sim um sítio para observar o turismo rural, mal chegámos um homem dirigiu-se a nós com copos de shot e serviu-nos licor de casca de pêssego (caseiro segundo o vendedor) e licor de mel, nada mal para quem estava em jejum. Acabámos por cair na tentação e comprámos uma garrafa de licor de casca de pêssego por oito euros. Depois de visitarmos as ruas da aldeia e de modo a mantermo-nos no percurso seguimos viagem em direcção a Benfeita onde planeámos almoçar.
Benfeita não é propriamente uma aldeia com muito xisto, no entanto apresentou-nos outros atractivos bem diferentes. Assentámos arraial em frente da Junta de Freguesia para almoçar a típica marmita de pão, queijo, chouriço e presunto. Colocámos o licor a refrescar num ribeiro logo ao lado, ribeiro esse que serviu para baptizar o Manolo, o Rui e o Marquito. Finda a refeição falámos com um habitante que por ali passava de modo a sabermos os locais de interesse do povoado. Ficámos então a saber que perto dali existiam umas cascatas que frequentemente eram visitadas pelos turistas que por ali passavam. E assim nos dirigimos ao paradisíaco local que fervilhava com população humana. Umas bonitas setas (umas vermelhas e outras azuis, não percebi a diferença) indicavam o caminho que subia pela montanha, ora por meio de escadas escarpadas na pedra, ora por pontes de madeira, ora por simples trilhos de terra batida, e a cada paragem para ganhar fôlego um novo socalco em forma de lago com uma cascata. Após alguns minutos a subir e passando as cascatas, sem ver ninguém, com o calor a apertar e a sombra a escassear achei melhor voltar para trás e regressar ao carro. Afinal ainda só vamos na sexta aldeia do roteiro...
E assim foi o último contacto com aquilo a que se pode chamar uma réstia de civilização neste dia, pois o nosso trilho iria-nos levar onde muito pouca gente foi. Ao entrarmos verdadeiramente na serra da Lousã e ao viajarmos pelos vértices do quadrado mágico disposto ao longo das encostas da serra finalmente o Portugal profundo tão prometido agora encontrado! Comareira, aldeia com apenas quatro habitantes, pois o quinto tinha falecido recentemente de doença na cabeça, segundo a Dª Maria do Céu, a nossa guia se é que se pode chamar guia a uma pessoa que nos fala de uma aldeia com 3 ou 4 casas e habitantes a condizer. Esta aldeia localizada ao cimo da primeira de muitas subidas em 1ª no Suzuki mostrava uma bela vista sobre os territórios circundantes, de facto a melhor visão que aqui se podia apreciar. No que diz respeito ao xisto, pouco abundante mas marcante nas (poucas) casas. E siga a banda!
Passemos ao segundo vértice, Aigra Velha, escondida nas entranhas da serra tal como o Postiga se esconde entre os centrais. Desolação total é talvez a expressão mais indicada para descrever esta aldeia. Ao contrário de Comareira o xisto aqui é rei e senhor. Se não me falha a memória apenas uma casa não era feita de xisto. No entanto não havia ninguém a habitá-las. Nem uma alma se via pelas ruas. A única vida provinha de um rebanho de cabras que passeava ao longo do caminho que aqui nos trouxe. Uma rápida vistoria e algumas fotos depois seguimos de novo pelo mesmo caminho a descer a serra, aplicando um pouco mais de velocidade no motor para testar a máquina. Um desvio à esquerda em direcção a uma pequena povoação que confirmamos tratar-se de Aigra Nova. Sem sairmos do carro atravessamos a aldeia e também não avistamos ninguém. Sítios desolados. No entanto a maioria das casas de xisto estão em obras, provavelmente para turismo rural no futuro. Já à saída da aldeia uma senhora num alpendre descasca batatas para um alguidar, tendo por única companhia um pequeno gato. Paramos e conversamos um pouco com ela que nos diz ser uma das duas habitantes de Aigra Nova. Também descobrimos, enquanto perguntamos por direcções, que vive uma família de cinco em Aigra Velha (provavelmente na única casa que não era de xisto, pois as gentes destas zonas não gostam muito do mineral e preferem ver as casas forradas a branco). E com direcções para o último vértice do quadrado mágico seguimos novamente serra acima até ao cruzamento de Aigra Velha e descemos ainda mais profundamente para Pena, uma aldeia bem lá no fundo, junto a um ribeiro que serviu obviamente para baptismo. Alguma conversa com um dos locais e descanso depois, damos uma volta pela aldeia. Fiquei com a sensação de que era uma aldeia bem mais habitada que as anteriores, digamos com cerca de vinte habitantes, e ao mesmo tempo uma aldeia com a b(u)onita estampa do português emigrante que regressa à terra que o viu nascer para contruir o último bastião que servirá de repouso final.
E com isto voltamos de novo (ai a minha 1ª) serra acima até ao cruzamento de Aigra Velha (se a serra fosse Lisboa, este cruzamento era o Marquês de Pombal) e seguimos caminho atravessando a serra para a encosta Sul/Sudoeste, não sem antes ver a provável matriarca da família de cinco que habitava tão desolada povoação. E que longa viagem foi esta através da serra, que impressionou pela sua verdura tão abundante nestas paragens e que tanta falta nós faz a nós beirões (teoricamente serra da Lousã também é Beira mas pronto...). Pinhais onde em pleno dia não entrava um raio de sol de tão cerradas as copas eram. Talvez meia hora ou mais depois lá chegamos a uma estrada de alcatrão que nos leva em direcção à Lousã mas pelo caminho passamos pela aldeia de Candal, que estrategicamente colocada na estrada nacional é paragem obrigatória neste roteiro. Uma aldeia que faz lembrar duas torres gémeas pois a sua dispersão faz-se em U, como se tivesse duas zonas díspares com uma fonte no meio para uso de ambas as partes. Muito xisto foi usado nesta aldeia, inclusive para pavimentar um riacho que passava no meio da povoação. Como se aproximava a hora de jantar começámos a discutir os planos para a refeição e o sítio para dormir (um conselho para todos os vagabundos que vão dormir na rua em viagem: escolham a vossa cama enquanto o Sol não se põe, pois no escuro tudo se complica...). Como o plano inicial era dormir perto da Lousã e Candal estava a cerca de 10km da vila sede de concelho (embora pela estrada serpenteante mais parecessem 50km), procurámos um local para dormir em Candal e encontrámos um miradouro bem apetecível, mas que provavelmente sendo particular e Candal sendo uma aldeia com cerca de 40 ou 50 habitantes, segundo informações locais, desistimos de ocupar por receio de causar problemas a quem quer que os quisesse criar. E sendo assim continuámos viagem à luz dos últimos raios de Sol do dia em direcção à civilização. Mas, encontrando uma placa que dizia Cerdeira 500m, e estando Cerdeira no nosso roteiro decidimos arriscar e subir a íngreme estrada até um beco sem saída (mais uma vez a serpenteante estrada de calhaus e terra batida fez com que parecessem 5km mais do que 500m) onde militava uma igreja, casa do Senhor, refúgio da pessoa católica. Pelos vistos, não são permitidos carros para Cerdeira, bom vamos a pé. Para além do Suzuki apenas um Mercedes estava estacionado no largo. Seguimos alguns metros por um pequeno trilho pavimentado a xisto e uma ponte de madeira sobre um riacho até entrarmos na aldeia. Todo o piso estava pavimentado a xisto e todas as casas ostentavam aquilo a que vínhamos (exceptuando uma casa, já caída de podre que estava caiada de branco). Uma visão curiosa até agora inédita chamou-me a atenção, sendo ela uma loja de ervas. Uma loja de ervas colocada neste fim do mundo. Enfim há malucos para tudo. Pouco depois encontrámos um senhor que regava o seu quintal, de férias com as suas duas filhas e que nos confessou existir ali uma propriedade destinada para agricultura biológica, provavelmente o mesmo dono da loja de ervas. Através dele ficámos a saber que viviam oito pessoas na aldeia permanentemente, mas que em tempo de férias a população aumentava. Tenho que fazer aqui uma pausa para dissertar um pouco sobre alguns pontos que acho interessantes mencionar nesta altura. Ao longo de toda a viagem não raras foram as vezes que ao entrarmos em aldeias que contavam com menos de uma ou duas dezenas de habitantes, e com tão poucas casas para serem habitadas nunca víamos mais do que, digamos 10% da população (salvo a rara excepção de Comareira onde eu e o Rui conhecemos 75% da população por não termos medo de cães ). Outro ponto importante frisar foi o de que apesar de Cerdeira até ter mais habitantes que outras aldeias previamente visitadas nunca me senti tão isolado como aqui. O simples facto de existir um pequeno trilho até chegar à aldeia deixou-me contente por verificar que ainda há locais habitados onde o progresso não chegou e principalmente não destruiu a ordem natural das coisas. De facto estávamos tão isolados que quando chegou a hora de jantar (tínhamos decidido jantar e dormir no largo da igreja onde estava colocado estrategicamente um “barbecue” construído pela população da aldeia para os dias de festa), assámos chouriça e só quando a luz do sol falhou nós apercebemos que a aldeia não tinha electricidade e estávamos no escuro. Tive que ligar as luzes do carro e com a ajuda da minha lanterna e da do Manolo lá nos desenrascámos e o manjar até foi bem bom, chouriça e presunto assados com pão e tinto traçado a 7up e licor de casca de pêssego a acompanhar. Um repasto digno de um vagabundo abastado que não olha a meios para abraçar a total experiência do seu propósito (não sei se haverá alguma hierarquia no mundo da vagabundice mas eu começo a subir no ranking). Até aqui tudo bem, mas como mencionei antes a falta de luz parecia incomodar algumas pessoas que (sem mencionar nomes, tirando o Bio que tenho que dizer pois confessou-nos a teoria mais espetacular que ouvi nos últimos tempos, a de que os ursos vão dominar o mundo num futuro próximo, qualquer coisa sobre conseguirem sobrepôr-se aos humanos) ao ouvirem o mínimo barulho saltavam no ar bradando a plenos pulmões alarmes sobre ursos e linces e violadores que se arrastavam pela floresta. Com o tempo e o final da refeição vieram as perguntas, “e se aparece um urso?”, “e se aparece uma alcateia de lobos?”, “e se aparecem uns gajos bebâdos e nos matam?”. Toda esta mariquice/paranóia alastrou-se como uma praga num filme do George Romero e a gota de água aconteceu quando um gato estava a 3 metros de nós a lamber o papel onde a chouriça assada tinha repousado sem ninguém saber. Não estava lua cheia mas de facto não se via para além de 2 metros a nossa frente, e mesmo esses era com dificuldade. No entanto por maioria lá se decretou que fôssemos dormir a Lousã. Em minha defesa devo referir que sempre fui contra esta ideia pois uma das regras do vagabundo que aprendi e já referia acima é escolher sempre o local para pernoitar quando ainda há luz para tal. Assim lá conduzi o carro até à Lousã onde beberricámos umas minis numa esplanada até sermos expulsos por volta da meia noite. A Lousã não tem noite nenhuma ou então passámos muito longe dela. É que nem a discoteca “Padaria” parecia animada. Depois começou o martírio, encontrar um local para dormir. Obviamente nenhum dos presentes conhecia os arredores e portanto toca de seguir para onde parece que há sítios fixes para dormir. Fixe ou não chegámos a um sítio que até parecia bem escondido mas tinha uma placa que dizia “Campo de treino de caça”. Era capaz de ser um bocado inconveniente acordarmos com o rabo cheio de zagalote e com cães a arrastarem-nos pelas pernas. Finalmente regressamos pela estrada para a serra mas em vez de seguirmos para o primeiro local acordado em Cerdeira cortamos antes e andamos uns quanto quilómetros até desistirmos de andar (supostamente o caminho levar-nos-ia a um parque de merendas, mas foda-se, fazer 50km para comer uma merenda sentado num banco de madeira mais vale faze-lo numa pedra). Assim deitados numa placa de cimento e com alguns montes de areia em redor lá nos deitámos. Dois dedos de conversa depois começam os primeiros a cair, e tal como tinha previsto as minhas insónias aliadas ao roncar incessável dos meus companheiros não me deixou dormir. À minha direita o Manolo ressonava abundantemente, seguido pelo Rui e à minha esquerda o Marquito acompanhava-os numa orquestra infernal. Só o Bio me deixava em paz. Pois bem agarrei no saco-cama e afastei-me alguns metros, o suficiente para deixar de os ouvir e conseguir dormir em relativa paz.

1 comentário:

Shiva disse...

Um dia ainda havemos de voltar a Cerdeira para nos vingarmos da nossa cobardia momentânea. Nem os ursos do Bio nos vão fazer tremer!

Está muito bom MC!