terça-feira, 18 de março de 2008

O velho

Quando a equipa do Ajax entrou em campo, as bancadas rugiram de alegria. Mais do que onze jogadores equipados de vermelho e branco, os holandeses eram os arautos de um futebol capaz de transportar para o relvado a forma de estar e sentir próprias da década de sessenta, a qual se extinguira, no calendário, havia dois anos. Sem posições fixas, erravam em campo como um pincel de um artista abstracto pela tela. Dizia-se que encontravam a ordem na desordem, porém, tinham um holandês franzino que comandava o moinho de Amesterdão. Com o número 14 nas costas, Johann Cruyff era aos vinte e quatro anos uma reserva natural de talento que com os seus rasgos de criatividade punha a ferro e fogo a defesa mais coriácea. Juntamente com o artesão do futebol total, Rinus Michels, estava pronto para mostrar à Europa que era possível ganhar sem apunhalar à traição o espectáculo.

Enlevados, os espectadores que preenchiam o estádio de Wembley seguiam avidamente cada exercício de aquecimento da equipa holandesa, ignorando por completo o adversário que se preparava para o embate na outra metade do relvado. Desconhecidos da bola indígena, o Panathinaikos fora a equipa sensação da Taça dos Campeões desse ano. Depois do Everton ter mordido o pó nos quartos-de-final, o campeão grego eliminara de forma espectacular o Estrela Vermelha, a grande potência futebolística da Jugoslávia de Tito. Quando o apito final soou no Apostolos Nikolaidis, confirmando a realização de uma quimera, uma maré verde e branca lavou as artérias da capital grega. Com um trevo de três folhas na mão, o símbolo do clube, os adeptos subiram até à Acrópole, onde anunciaram o nascimento de deuses de carne e osso equipados de chuteiras e calções.

Era nessa eliminatória que o treinador da formação helénica pensava. As rugas que lhe sulcavam o rosto faziam jus à alcunha de velho com que os gregos, carinhosamente, o apodavam. De braços cruzados, seguia com apreensão o aquecimento da equipa. Sentia os jogadores ausentes, como se estivessem ainda em Atenas a comemorarem a passagem à final. A bola, verdadeiro ferro em brasa, queimava-lhes nos pés e fugia feita enguia. Passou a mão pelos cabelos negros puxados para trás e carregados de brilhantina, o que lhe dava um ar de galã. Há muito que percebera que aquela não era a equipa que eclipsara o Estrela Vermelha, esmagando-o em casa por três zero, depois da derrota em Belgrado por quatro um. O talento inato de Antoniadis e Kamaras, os heróis dessa noite louca, fora tolhido pela importância de serem o primeiro clube grego a chegar a uma final europeia. Fugiam da bola como coelhos amedrontados e, sempre que lhe tocavam, erravam invariavelmente os passes.

De cabeça baixa, caminhou lentamente por aquele relvado, onde, anos antes, ajudara a dizimar a arrogância dos súbditos de sua majestade. Parou na linha divisória do meio-campo e olhou para direita e depois para a esquerda. Respirou fundo. A alma do jogo e a sede de vencer estavam do lado dos holandeses. Sentia-o perfeitamente. Cravou os olhos gelados em Cruyff e nos restantes gomos de laranja que se pavoneavam com a bola, incensados pelos gritos eufóricos de um público que rejubilava a cada toque de calcanhar e outras habilidades que tais. Do outro lado, os jogadores gregos faziam figura de palhaço pobre, embasbacados que estavam com o facto de irem defrontar o Ajax num dos templos maiores do futebol.

“Iko vai para a baliza”, gritou-lhe numa voz firme. O rosto crispado ardia em fúria. Ao longo da sua carreira sofrera derrotas dolorosas, mas nunca fora humilhado por ninguém. Fixou o olhar no guarda-redes, figura minúscula no meio de um portão incomensurável. Poisou a bola no relvado e acariciou-a com o pé esquerdo que sabia de cor todos os ardis e alçapões do couro. Deu dois passos atrás e desferiu-lhe um golpe seco. Ao ângulo. Rematou de novo e, uma vez mais, as redes dançaram. A trinta metros de distância via as pérolas de suor que brilhavam na testa do Ikonomopoulos, marioneta desengonçada perante os remates do velho. Novo asteróide flamejante rasgou o frio húmido de Wembely antes de entrar na baliza.

Num efeito dominó, as cabeças dos espectadores viraram-se para o outro meio-campo, onde o treinador do Panathinaikos rematava com a precisão de um ourives. A bola, qual cadelinha fraldiqueira, cedia a todos os seus caprichos, no entanto, aos olhos de Ikonomopoulos era um lince veloz que só parava quando feria de morte a sua baliza. Intratável, ora entrava ao ângulo esquerdo, ora ao direito, ora por baixo, ora por cima. Perdido entre os postes, tremia como um velho, ao ver todos os olhos concentrados em si. Por isso, suspirou de alívio quando a humilhação acabou. No regresso aos balneários, o público, rendido ao festival de remates, tributou os gregos com uma longa salva de palmas, para espanto de uns holandeses ensombrados pela classe do velho.

Dentro de campo, Dick van Dijk e Arie Haan confirmaram a superioridade técnica do Ajax que se sagrou campeão europeu pela primeira vez. Porém, como admitiu Ikonomopoulos, a vitória nada teve a ver com o talento do adversário, mas sim com os minutos de terror que vivera antes do pontapé de saída, os quais lhe tinham paralisado os reflexos. “Se levo golos do velho, o que me espera frente a Cruyff, Kaiser, Muhrer e companhia?”, desabafou anos mais tarde.

O velho chama-se Ferenc Puskas, o Major Galopante. Ainda hoje, todos os que estiveram presentes nessa final, recordam-na pelo que se passou antes, quando um sujeito baixinho e com uma barriga proeminente não falhou um único remate a trinta metros da baliza.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Não estamos sozinhos

Alegrem-se corações nanikianos! Não estamos sozinhos na luta pela criação de uma juventude alcoólico-desportiva. A prova disso é Patrice Sintzen, correspodente de A Bola na Europa central, mas sobretudo um Naniko dos sete costados, como o comprova o artigo publicado no jornal acima referido que passo a apresentar:

Para os adeptos do NAC, as vitórias podem escassear mas nunca a cerveja

A caneca em vez das taças

O NAC é o clube holandês que mais cerveja serve por espectador e os seus adeptos têm orgulho nesse dado. Ali, o prazer da bebida conta mais do que os resultados obtidos em campo.

Há ano e meio, a cidade holandesa de Breda estava dividida. A direcção do NAC, clube de futebol local que evolui na primeira liga, queria concluir um acordo com a cervejaria local Bavaria e deixar de lado os contactos com o gigante belga InBev.

A eventual mudança de patrocinador, porém, provocou uma pequena revolução na cidade, bem patente nas opiniões no jornal local, nas sondagens na internet, nos cartazes e nos protestos dos adeptos que se recusavam beber "mijo de mocho..." Parecia cómico, mas milhares de euros estavam em jogo, pois o NAC é o clube holandês que mais cerveja serve por espectador. Às vezes serve quase tanto como o Kuip de Roterdão ou o Arena de Amesterdão, que são duas vezes maiores.

Em Breda, têm orgulho destes dados. Num dos topos do estádio, um grande cartaz diz: "A única coisa que tememos é que a cerveja venha a fazer falta." Aí, os tambores são proibidos e os altifalantes não dão música após um golo. Os adeptos cantam coisas diferentes do que se ouve noutros estádios.

Estes conceitos têm inesperadas reperecussões desportivas. Assim, o treinador Ernie Brandts obteve sucessos que o clube não alcançava há muito tempo, mas o seu contrato não foi renovado. Razão: o futebol do NAC deve ser mais espectacular. Na boca dos adeptos do NAC, "espectacular" não quer dizer "bonito". Quer dizer "suado". E o NAC, esta época, apesar de ficar no topo da tabela, pratica um futebol calculista.

Quem introduziu este conceito no NAC, em 1975, na ocasião de um jogo particular frente ao Fortuna Dusseldorf, aquando da inauguração da iluminação no estádio, chama-se Bob Maaskant. É o pai de Robert Maaskant, que, a partir da próxima época, vai treinar o NAC.

Não se sabe se vai ter o mesmo sucesso desportivo que Ernie Brandts , mas isso não parece ser o mais importante. Em 30 anos, o NAC desceu várias vezes de divisão. Até teve dificuldades financeiras, sobretudo quando mudou de instalações. Mas nunca ninguém deixou de levantar uma caneca de cerveja!