domingo, 27 de junho de 2010

Eis a questão



De outra perspectiva
À laia de Nuno Francisco: É o momento de todas as decisões. Deixou de haver o outro lado das coisas. Perante a fúria bestial que nos desafia, toda a metafísica se torna mais física que o granito beirão. É o regresso aos fundamentos, em que tudo se resume à questão essencial — tê-los ou não tê-los.

Foto: Shiva (Salvaterra de Magos); Texto: Shiva

domingo, 20 de junho de 2010

Da Cova da Beira

"Quem a olha, à noite, da Gardunha, percebe, pelo contraste da iluminação dos pólos urbanos e das comunidades afluentes, a enorme potencialidade da geografia humana que a Cova da Beira, em si mesma, oferece. Estamos face a uma metrópole à nossa dimensão que gravita à volta do concelho da Covilhã (onde avulta a Universidade da Beira Interior) e também dos concelhos do Fundão e Belmonte. Esta convergência define uma cidade média verdadeiramente singular no tecido urbano português. Como articular politicamente esta quase imposição geográfica, eis a questão. Não havendo instrumentos de poder interegional , nem vontade de debater a questão de um ponto de vista colectivo, resta que o tempo, esse escultor, acabe por impor a metrópole da Cova da Beira como espaço configurador dos seus habitantes. Quantos estudos invocam projectivamente essa realidade? Muitos. Qual tem sido o seu destino, até hoje? A gaveta."

Fernando Paulouro Neves, director do Jornal do Fundão


Foto de Riafoge

terça-feira, 15 de junho de 2010

Nanikos Populares 2010 - a aventura continua

Noite com aroma a sardinha a bailar pelas ruas inundadas de música. Nos bairros lisboetas, os manjericos embriagaram-se com a festa dos Nanikos FC, o clube que resiste à ameaça da cirrose. E ao tempo também. Prova disso são estas fotografias e as quadras dos Nanikos Populares. Manda a tradição que na noite de Santo Policarpo o naniko ofereça à nanika um garrafão de vinho com uma bonita quadra presa na asa. E assim foi.

Na noite de Santo António
Partiste-me o coração,
Fui para casa tocar harmónio
E beber pelo garrafão.


Na noite de Santo António
Comprei um manjerico,
Gastei o dinheiro todo
Mas deixei feliz o meu Naniko.



Oh meu rico Santo António
És um Santo casamenteiro,
Dá uma mulher ao Marquito
Para que não vire paneleiro.


Oh meu rico Santo António
Dá amor ao meu Xico,
Sei que ele é malvado
Mas é o meu Naniko.


Na noite de Santo António
Dancei com uma checa,
Ofereci-lhe um manjerico
Porque não quis dar uma queca.


Oh meu rico Santo António
Dá beber ao meu André,
Sei que já está com os copos
Mas ainda se aguenta de pé.


Na noite de Santo António
Danço e bebo até de madrugada,
Espero encontrar os meus amigos
E também a minha amada.


Santo António
Santo Antoninho,
Dá-me inspiração
Para oferecer ao meu Ruizinho.


Oh meu rico Santo António
Dá-me pão com sardinha,
E se não for pedir muito
Deixa-me dançar com a Paulinha.

sábado, 12 de junho de 2010

Descarrilando por aí

Lisboa é uma mulher que se vai descobrindo a cada novo encontro. Descarrilo da geometria rígida da rotina e viajo pelo seu regaço. Desço a calçada íngreme da Bica, onde o fim de tarde se vai vestindo para a noite. Dançam nuvens vagarosas de fumo dos fogareiros à entrada dos cafés. Homens de farto bigode, calções e t-shirt cravados de nódoas de gordura atiçam o carvão incandescente. A sardinha já pinga no pão, rescendendo ruas, becos e alfurjas com o seu cheiro a mês de Junho.

Lisboa é um rio cheio de meandros que desaguam em recantos pitorescos, poiais e pequenos jardins. Ao entardecer, as cores harmonizam-se num quadro que embala os sentidos. Mesmo as estrelas que desceram do céu de água cinzenta não ferem os olhos com o seu brilho cru. Vogam nas fitas azuis, vermelhas, verdes e amarelas, dando um sorriso festivo à Rua dos Cordoeiros. Além ondula uma bandeira nacional pendurada na varanda e acima um vaso de manjerico espreita à janela. No largo Santo Antoninho afinam-se graves e agudos da aparelhagem, que passa canções portuguesas debaixo de uma árvore de copa elegante. Por causa da espessa crosta de ignorância com que saí do ventre da faculdade, não lhe sei dizer o nome. Sigo adiante. Os primeiros comensais já estão sentados nas mesas brancas de plástico que ladeiam a rua. Saem do lume as sardinhas e as febras fumegantes acompanhadas pelo tinto da casa, servido em jarros de barro. Quando o xaile da noite cobrir em definitivo o dia, esta e todas as outras ruas serão um mar transbordante de festa que alastrará por todos os bairros devotos a Santo António. Não sei bem porquê, sinto um travo forte a nostalgia de um passado difuso. As memórias são peixes que vêm à superfície para logo mergulharem no leito do tempo.

Lisboa é uma boneca russa que se desvela aos meus passos errantes. Descubro uma nova rua que flutua por cima do frenesim da Calçada do Combro ao lado da Igreja de Santa Catarina. Com o espanto próprio dos iniciados, passo o portão verde que está aberto e avanço. Há um arco branco logo à entrada que lhe dá um toque árabe. Mais à frente descubro um campo de futebol com piso de tartan. Mas o que domina o panorama é a elegante chaminé laranja nas traseiras da Rua do Século, outrora Formosa. A espreitar do lado esquerdo está o vermelho escuro da Escola Passos Manuel. Saio e volto a mergulhar no pulsar festivo da cidade.

Cai a noite e sinto o desamparo de quem já não é conduzido por carris. A certeza totalitária do ferro deu lugar ao acaso que tropeça, democraticamente, por uma Lisboa irregular. Antes assim. São cada vez mais efémeros os momentos em que tudo volta a ser real. As luzes eléctricas eclipsaram as estrelas que brilham lá em cima cada vez mais solitárias. O Homem hipnotizado durante horas a fio pelo fogo de uma fogueira já não existe. E o grito milenar de espanto perante o incompreensível espectáculo de uma existência feita de carne e osso já mal se ouve. Hoje gostava de o ter ido escutar a Foz Côa, onde tudo começou. Mas os carris de ferro ditaram outra coisa.