sábado, 1 de fevereiro de 2014

MC: "Gostava de ter um filho na Alemanha, abrir uma empresa de informática e experimentar todas as cervejas do mundo"

Em 2014, muitos dos Nanikos chegam aos 30 anos de idade. Para celebrar  um marco tão significativo na vida de todos os que têm engrandecido este clube, o Jornal O Naniko inicia hoje uma série de entrevistas com cada um deles. Nos depoimentos recolhidos, contam-se muitas das histórias que fizeram a História de três décadas de existência. São relatos por vezes hilariantes e por vezes comoventes, mas que, na sua essência, deixam transparecer o lado mais humano dos entrevistados. Não se trata, no entanto, de um exercício jornalístico meramente virado para o passado — também se tentou vislumbrar o futuro à luz das expectativas, angústias e sonhos que trazem na bagagem do amanhã, a qual, como se sabe, é sempre condicionada pelas circunstâncias efémeras do presente. Em suma, estes trabalhos são fotografias que tentaram captar sentimentos, recordações e desejos que, quando chegarem até si, já serão necessariamente diferentes. Apesar de tudo, é preciso ser optimista — talvez tenham a força suficiente para sobreviver à erosão do tempo e, quiçá, figurar na biblioteca pessoal do leitor ou, se não for pedir muito, no canto reservado às suas memórias mais queridas.

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Quem entra no número 2 da Suffolk Street é de imediato sugado pelo remoinho de vozes, o tilintar de talheres, as cores das bandeiras no tecto e, claro, pelo choque boémio de vastas canecas de cerveja que entornam a espuma no soalho enegrecido. Poucos segundos bastaram para que também ficasse contagiado pela bonomia festiva que reina no O’Neill’s, típico pub irlandês, localizado no coração histórico de Dublin. O ambiente quente e acolhedor fez-me esquecer, quase instantaneamente, a noite gelada que está do lado de lá da porta e, sobretudo, a chuva esfarelada que cai numa monotonia irritante sobre a cidade.

Avanço em passo rápido por entre a clientela heterodoxa do pub. Por aqui há estilos e modas para todos os gostos: desde a calça de ganga, a minissaia, o top e o ténis branco até ao aprumo da gravata, da camisa engomada, do sapato italiano e do cabelo estilizadamente despenteado. Apesar de serem uma minoria, vêem-se também alguns casais acima dos 60 anos. Bebem com religião a sua pint de final de semana, enquanto espreitam, sem grande interesse, para o programa de antevisão da 24ª jornada da Premier League inglesa, que passa num dos ecrãs gigantes.


Encontro por fim o MC e a sua namorada, a A. F., numa mesa mais recatada, ao fundo do corredor. Levantam-se assim que me vêem, cumprimentam-me e perguntam-me se foi fácil dar com o caminho. Felizmente não há muito que enganar, porque o pub fica mesmo em frente à igreja de St Andrew, cuja torre é visível a vários quilómetros de distância.

Sem perder tempo, cedemos de bom grado às exigências do estômago e pedimos como entrada umas deliciosas Ostras Kilpatrick, acompanhada por uma Guinness de espuma muito suave. Acto contínuo, atirei-me a um pernil de cordeiro irlandês lentamente assado, cuja carne tenra e suculenta se desfazia na boca como algodão doce. O MC optou pelo bife irlandês ensopado em Guinness e a A. F. aventurou-se num generoso naco de peru irlandês assado, com mel e presunto cozido envolto em mostarda. Ficámos, evidentemente, cheios, empanturrados, à beira da apoplexia. Não fosse a salvífica cerveja e ainda hoje a nossa digestão estaria por fazer: o MC e eu bebemos 10 canecas de meio litro, sempre de estilos diferentes, o que nos deixou galvanizados para o resto da noite. A A. F. é que não ficou muito satisfeita, porque a partir da terceira dizia repetidamente, em tom de censura, “MC já chega, não bebas mais…” Escusado será dizer que não lhe deu ouvidos, como rapaz ajuizado que é.

Bem comido e bem bebido, iniciei então a entrevista ao MC, que passou pelos momentos mais importantes e marcantes da sua existência, pelos sonhos que tem por cumprir e pela vida que leva actualmente em Dublin. Trata-se de um depoimento genuíno e profundo de alguém que tem sabido extrair o sumo essencial de cada ano que viveu. Em suma, o leitor está na presença de um documento histórico que deve guardar na estante e reler sempre que possível.

Jornal O Naniko: Por que razão escolheu este local para a entrevista?

MC: Então depois de comer o que comeu ainda faz essa pergunta? Escolhi evidentemente por causa da qualidade da comida e da bebida e também porque aqui passam os jogos da NFL [National Football League]. Ainda há coisa de três semanas estive aqui a assistir à final da Conferência Americana. Os Broncos venceram os New England Patriots por 26-16. Os Broncos têm o melhor ataque da prova e sobretudo têm o Peyton Manning. O gajo é incrível – aos 37 anos ainda é um dos melhores quarterbacks da NFL. Nesse jogo lançou para 400 jardas e dois touchdowns. Agora no SuperBowl vão jogar contra os Seattle Seahawks, que têm a melhor defesa da NFL. Vai ser das finais mais equilibradas de sempre. Como é óbvio vou estar aqui no dia 2 de Fevereiro a assistir ao jogo. Além disso, o Derrick Coleman, que é surdo desde os três anos, vai estar na final. É por estas histórias e pela maneira como é organizado que eu adoro este desporto. Não há cá simulações ou perdas de tempo como no futebol. Aquilo é para homens de barba rija. Basta ver a quantidade de lesões que há por ano: ombros deslocados, braços partidos, lesões graves na cabeça… Além disso, é um jogo extremamente táctico, ou seja, ganha quase sempre a melhor equipa. Não há cá bolas na trave ou foras-de-jogo mal tirados.

Jornal O Naniko: De onde surgiu essa paixão pelo futebol americano?

MC: Da minha estadia nos Estados Unidos. Quando estive lá a trabalhar comecei a assistir aos jogos e interessei-me. Antes disso nem sequer conhecia as regras.

Jornal O Naniko: Pelo que percebo, integrou-se com facilidade na Irlanda…

MC: Sim, não posso dizer que tenha sido complicado. Uma das coisas que tem ajudado muito é a simpatia das pessoas e também a descontracção com que vivem o dia-a-dia, sem grandes preocupações em relação ao futuro, um pouco à semelhança dos portugueses. Aliás, acho a Irlanda muito semelhante a Portugal, quer nos aspectos positivos quer nos negativos. Ainda no outro dia, quando ia no avião de regresso após as férias de Natal em Portugal, meti conversa com um irlandês e ele disse-me que os portugueses e os irlandeses eram muito semelhantes na maneira de estar. Quando ele visitou as aldeias portuguesas viu os velhotes nas tascas a beber copos de vinho tinto e percebeu que o cenário era praticamente igual ao da Irlanda rural. Apenas na bebida é que se descobrem diferenças: aqui bebem sobretudo cerveja e frequentam pubs. Tal como em Portugal, aqui também se vê muita selvajaria no trânsito e fazem-se coisas em cima do joelho. É igual ao desenrascanço português. Ou seja, em vez de fazerem as coisas bem logo à primeira para durarem mais tempo, faz-se de qualquer maneira e amanhã logo se vê.

Jornal O Naniko: Já conhece bem o país?

MC: Sim, tenho aproveitado para viajar, sobretudo ao fim-de-semana. Já fui a Cork, Galway, Belfast, na Irlanda do Norte… São cidades simpáticas. Também tenho aproveitado para conhecer a história do país. É um verdadeiro emaranhado de dinastias, guerras, conflitos… A história portuguesa é muito mais linear – teve três dinastias, quatro vá, se contarmos com a dos Filipes, depois seguiu-se a primeira República, depois a ditadura e depois o regime democrático actual. Aqui não: houve várias guerras de sucessão ao trono, várias potências europeias andaram por aqui, como os espanhóis… É bastante interessante.

Jornal O Naniko: Foi fácil tomar a decisão de largar Portugal e vir para aqui?

MC: Sim, difícil era ficar lá. O que é que estava a fazer em Portugal? Arranjei um trabalho em que não conseguiram cumprir com o que me tinham prometido em termos salariais, por isso percebi que tinha de sair. Aconselho todos a fazer o mesmo: em vez de andarem a perder tempo em manifestações e em reivindicações que não mudam nada, mais vale apostarem na formação e depois tentarem a sorte no estrangeiro. Eu respeito as pessoas que se manifestam, mas há coisas que vão demorar gerações a mudar e a verdade é que só se vive uma vez. Entre tentar ser bem sucedido profissionalmente ou viver permanentemente revoltado e triste com a situação do país, eu escolho a primeira opção.

Jornal O Naniko: Recomenda também os portugueses a emigrar?

MC: (risos) Não, quem tem trabalho e está bem deve ficar. Eu também teria ficado por lá se me oferecessem condições para isso. Mas assim que percebi que progressão na carreira e salários competitivos são verdadeiras abstracções em quase todas as empresas, peguei na mala e fiz-me à estrada. E ainda bem que o fiz. Neste momento estou numa empresa em que aprendo todos os dias, em que estou em permanente evolução e em que se valoriza a formação e o investimento em novos conhecimentos. Onde é que se tem isso em Portugal?

Jornal O Naniko: Algumas pessoas confessaram que ficaram surpreendidas com a rapidez com que saiu do emprego em Portugal e arranjou logo outro na Irlanda.

MC: Não podemos estar parados, não é? A partir do momento em que deixei o trabalho, comecei de imediato a estudar as hipóteses de vir para a Irlanda. Em poucas semanas já tinha identificado as principais empresas em Dublin, já sabia qual era o custo de vida do país, quanto custava alugar uma casa… Depois, foi só escolher a empresa que me oferecia melhores condições.

Jornal O Naniko: A verdade é que o MC já teve uma experiência no estrangeiro. O que é que correu mal nos Estados Unidos para ter regressado a Portugal?

MC: O trabalho que fazia lá não era muito estimulante. Era demasiado rotineiro, passava os dias a fazer a mesma coisa e em pouco tempo senti-me completamente desmotivado. Além disso, trabalhava com bastantes indianos no meu departamento. Como pode imaginar, todos os dias havia um cheiro insuportável a chamuça e a caril que não se podia. Aquilo entranhava-se de tal forma na roupa e na pele de uma pessoa… Só para ter uma ideia, em minha casa, quando faltava óleo, os meus amigos pegavam-me nas pernas e nos braços e torciam-me. Em cinco minutos conseguiam encher dois alguidares de óleo, o qual muitas das vezes tinha uma qualidade superior ao óleo fula. A determinada altura abastecia três roulottes de hambúrgueres, o que me dava um dinheiro extra. O pior foi quando fui fazer análises e descobri que o meu colesterol estava a bater ferros. Nessa altura percebi que a minha saúde estava em primeiro lugar, apesar das batatas fritas deliciosas que fritávamos com o óleo extraído do meu corpo. Por isso, fui para Portugal. Desde então nunca mais consegui comer uma chamuça nem ver um filme indiano. Sempre que o tento fazer, começo logo a suar caril e a praticar yoga.

Jornal O Naniko: O que é que guarda da experiência nos Estados Unidos?

MC: Guardo a organização, algumas festas e sítios engraçados que visitei, como o Big Sur. A sociedade americana trabalha bastante, consome bastante e gosta de arriscar em novas ideias, novos negócios. Não tem comparação com Portugal. Além disso, os americanos são bastante abertos, metem conversa com facilidade e são bastante transparentes no que dizem e no que fazem. Ainda é a terra das oportunidades para muita gente. Há muitos asiáticos que na sua terra não teriam onde cair mortos e que nos Estados Unidos conseguem montar um negócio e ter uma vida minimamente confortável.




Jornal O Naniko: Essa foi uma das primeiras experiências profissionais após a conclusão do curso de informática. Como é que foi a sua vida de universitário em Lisboa?

MC: (fica pensativo) Não tenho grandes recordações da universidade… Nos primeiros anos não foi fácil. Senti-me desadaptado e sozinho em Lisboa. Vinha do Fundão e caí de pára-quedas em Paço de Arcos, que ficava a vários quilómetros da universidade. Não foi fácil. Muitas das vezes passava os dias em casa a ver vários filmes seguidos. Foi assim que conheci a filmografia quase completa do Nicholas Ray, do Willian Friedkin ou do John Carpenter, um dos grandes mestres do terror. Uma das melhores decisões que tomei foi sair do Técnico. Lá era mais fácil ver um elefante verde com asas do que dois bons pares de mamas seguidos. Mas isso também seria dar pérolas a porcos, porque o pessoal do Técnico excita-se mais a snifar linhas de java e a alucinar com trips de Wireless Wide Área Networks dissolvidos em html do que com alguém do sexo feminino. No entanto, fiz algumas amizades e fui a algumas recepções do caloiro engraçadas. Mas a minha vida universitária não foi nada do outro mundo.

Jornal O Naniko: Percebeu cedo que queria seguir a área de informática?

MC: Sim, a partir dos meus 13, 14 anos comecei a interessar-me por computadores. Desde cedo percebi que era uma área com futuro, em que iria conseguir trabalho sem grandes dificuldades.

Jornal O Naniko: Uma pessoa com quem falei antes desta entrevista disse-me que, se não fossem os seus pais, provavelmente teria ido para Coimbra e hoje em dia andaria a escrever poemas pelas ruas e a beber absinto. É verdade?

MC: (franze a testa) Vê-se mesmo que esteve a falar com o Ucrânia. Esse gajo… Lá está, trata-se de um gajo de letras que, como não tem nada na cabeça, tem de encher o espaço vazio com coisas que às vezes me saem. De vez em quando atira-me isso à cara, recorda-me que uma vez disse que queria escrever poemas nas ruas… Que importância é que isso tem? Quando somos mais novos queremos ser pintores, futebolistas, astronautas… Sim, é provável que sem a influência dos meus pais talvez estivesse agora por Coimbra a conviver com farrapos, ou talvez não, porque crescemos e ficamos mais maduros… Mas olhe, da próxima vez que estiver com o Ucrânia pergunte-lhe antes se sabe resolver uma equação de segundo grau, porque, como é de letras, duvido que saiba. Ou melhor, pergunte-lhe se já sabe contornar as placas triangulares pelo lado certo. Uma vez, numa viagem pelas aldeias do xisto, cometi a loucura de lhe passar o carro para as mãos e passado cinco minutos ia chocando de frente com outro carro por ter contornado a placa triangular pelo lado contrário. Que farrapo… Outra vez, num café alguém disse ‘chama aí o Índio’ e vai ele e diz ‘é melhor não, porque o gajo ainda atira uma seta!’ Uma seta! Quem é que se lembra disto? Só um gajo de letras que não tem mais nada em que pensar! (ri-se descontroladamente durante cinco minutos)

A.F.: (encolhe os ombros e revira os olhos)

Jornal O Naniko: Já está mais calmo? Muito bem… O MC nasceu e viveu toda a sua infância e grande parte da adolescência no Fundão. Mantém uma ligação forte à cidade?

MC: Cada vez menos… Vou lá raramente por falta de tempo e porque faz cada vez menos sentido ir lá. Não tenho lá família, a maior parte dos amigos também não está lá, portanto… o que é que lá vou fazer? Fazer compras à Acrópole?

Jornal O Naniko: Não tem saudades?

MC: Às vezes tenho algumas, mas não sou pessoa de grandes nostalgias, nem de estar sempre a recordar o que passou. Além disso, o Fundão está cada vez mais distante, faz parte de um passado cada vez mais passado. E ainda bem que assim é, porque prova que continuei com a minha vida, que tenho um presente estimulante, desafiante. É mau quando vivemos sempre atrelados a um passado, seja ele bom ou mau.

Jornal O Naniko: Como é que foi a sua infância no Fundão?

MC: Foi boa. Lembro-me de jogar playmobil com o meu primo, de ir à neve na Serra da Estrela, de jogar às escondidas na escola primária… Depois, com o aparecimento dos computadores, lembro-me de passar horas a jogar Pacman e um jogo de volley de praia. A determinada altura comecei a ir para o bairro de Santa Isabel, que não ficava muito longe de casa. Ia mandar bujardas aos portões com o Ucrânia. Era o dia todo naquilo: 'Bum! Bum!' Os vizinhos ficavam desesperados! A determinada altura começaram a aparecer os miúdos que moravam ali para jogarem connosco. Havia o Jeto, que era japonês. O pai dele tinha um café no bairro… Chamávamos-lhe o vesgo, porque ele era capaz de confundir um Magnum de Amêndoas com um Mini Milk. (risos)

Jornal O Naniko: (risos)

MC: É verdade! Ele começava a apontar ao calhas para o cartaz dos gelados e perguntava sucessivamente: 'É este? É este? É este?' Havia também o André, que era guarda-redes como o Jeto. A avó costumava andar atrás dele com a mangueira e era bruxa. Uma vez perguntámos-lhe quantos anos é que ela tinha e ele descoseu-se e disse que tinha seiscentos anos. (risos)

A.F.: (encolhe os ombros e revira os olhos)

MC: Havia também o Super Pila, talvez o pior jogador que conheci, o Anton Diogster, avançado austríaco, o Flipe que era também conhecido por Hagi da Gardunha, devido à sua qualidade técnica. Ele era também filósofo, costumava praticar o método da douta ignorância, porque sempre que lhe perguntávamos alguma coisa, respondia: ‘Eu não sei nada.’ Até que um dia eu e o Ucrânia lhe perguntámos por que é que havia pretos. E ele deu a melhor resposta de sempre: ‘Porque tu és broche!’ (risos)

A.F.: (encolhe os ombros e revira os olhos) Qual é a piada disso?

MC: Há coisas que nunca irás perceber…Havia também os Telettubies que moravam todos num só prédio. Enfim, éramos um grupo engraçado.



Jornal O Naniko: Quem eram os seus ídolos do futebol naquela altura? Talvez o Figo, o Zidane…

MC: Não, nada disso. Os meus ídolos eram o Brian Deane e o King.

Jornal O Naniko: O Brian Deane e o King? Mas porquê?

MC: Em primeiro lugar porque tinha bastantes semelhanças físicas com o Brian Deane – com 13 anos já era bastante alto e forte. Tal como o avançado inglês, conseguia impor-me facilmente dentro da grande área contra centrais duríssimos que, na maioria das vezes, eram miúdos com metade do meu tamanho. Por isso, as bolas aéreas eram quase sempre minhas. Depois, apreciava a potência descomunal do remate do King. Era nele que me inspirava sempre que mandava um bujardo no cubículo, ao lado do largo onde costumávamos jogar.

Jornal O Naniko: Passou quase toda a adolescência no bairro a jogar à bola?

MC: Parte da adolescência. A determinada altura, talvez com 14 ou 15 anos, descobri o álcool e ele descobriu-me a mim. Lembro-me que a primeira bebedeira que apanhei foi na garagem do Higuita e que quando cheguei a casa vomitei. Tive de dizer à minha mãe que tinha comido um iogurte estragado. (risos) Depois comecei também a fumar cigarradas na Casa do Zé com os irmãos metralha, o Carrola, o Michael, o Mica, o Higuita, o Toni, o Hugo zarolho, o cigano Adelino… Comecei também a sair para os bares – o Praça, o Impacto, o Salão de Jogos do Flores, a Desportiva do Fundão… Bons tempos.

Jornal O Naniko: Segundo me disseram algumas pessoas, foi também nessa altura que começou a ouvir estilos de música mais extremos, o que lhe valeu a alcunha de Metal…

MC: Desde muito novo que ouço estilos de música alternativos. Lembro-me de ouvir o Roots e o Chaos A. D.  dos Sepultura, quando ainda lá estava o Max Cavalera. Os Korn foram também uma banda marcante para mim, sobretudo os primeiros álbuns, como o Korn – Korn, que tinha a música Blind, um verdadeiro marco. Os álbuns seguintes também eram muito bons, como o Life is Peachy, o Follow the Leader e o Issues. Depois também curtia Limp Bizkit antes de se terem tornado comerciais, Cypress Hill, Mad Ball, Soulfly, Rage Against the Machine, Pantera, Moonspell… Sempre ouvi muito metal, o que me ajudou a aprender inglês. Eu nunca estudava para os testes de inglês, limitava-me a ler letras de música. A minha mãe de vez em quando queixava-se da batucada, como ela dizia, e eu explicava-lhe que estava a aprender inglês. (risos)

Jornal O Naniko: Mas o metal funcionava também como uma forma de afirmação pessoal?

MC: Eu ouvia porque gostava. Só mais tarde é que percebi que isso chocava com algumas cabeças mais sensíveis. A determinada altura pode-se dizer que se tornou uma forma de me afirmar e de resistência às músicas comerciais. Quem entrava no meu carro só ouvia aquilo. E que ninguém viesse pedir para trocar de música… saltava logo borda fora! Dava-me gozo ver a cara das pessoas quando ouviam a minha música, elas não percebiam nada daquilo. Ainda por cima no Fundão, onde há aquela mentalidade retrógrada de recusar tudo aquilo que se não conhece… Lembro-me uma vez, em casa do Ucrânia, o Rebordão ter dito que queria ver um concerto dos U2 que estava a dar na televisão e eu ameacei que me ia embora. Levava a música muito a peito!

Jornal O Naniko: É verdade que chegou quase a vias de facto por causa da música?

MC: Sim. A determinada altura comecei a ouvir bandas ainda mais extremas, como Dimu Borgir, Iniquity ou Cradle of Filth. Os Cradle of Filth são uma banda que gosto muito. Têm grandes álbuns como Cruelty and the Beast, Midian, Damnation of a Day… O Dani Filth tem grande voz. Ainda sei algumas músicas de cor como Doberman Pharaoh (faz voz grossa e começa a cantar): ‘One final time, on the steps to the shrine / Of Thoth, I twined with fate / Let my people go / Still my word is no / Then Death shall be the deciding plague!'

A.F.: (encolhe os ombros e revira os olhos)

MC: …então houve um dia que, em casa do Ucrânia, quis mostrar ao Sapec a qualidade dos Cradle of Filth. Só que bastaram alguns segundos para que ele começasse a gozar com a música e eu disse-lhe que a partir daquele momento tudo aquilo que ele me dissesse não passaria da sola do meu sapato, posição que, de resto, ainda hoje mantenho. Nessa mesma noite, também em casa do Ucrânia, o gajo deu-me um beijo no pescoço e eu só não o esborrachei ali mesmo porque me seguraram. Actualmente já sou mais calmo, ouço o que gosto e se os outros estiverem incomodados posso mudar, sem problema. Mas naquela altura quem falasse mal da minha música punha a sua integridade física em risco.

Jornal O Naniko: Hoje em dia ainda ouve esse tipo de música?

MC: Sim, claro. Ao longo dos anos tenho descoberto grandes bandas. Algumas clássicas, como os Iron Maiden, Black Sabath. Dream Theater ou Candlemass. Esta última é uma das pioneiras do doom metal. Aconselho a ouvir o primeiro álbum deles, o Epicus Doomicus Metallicus. Atenção que descobri a maior parte destas bandas muito antes do aparecimento da internet. Eu lia regularmente publicações de metal e comprava cd. Interesso-me mesmo muito pelo metal. Actualmente descobri Russian Circles, Orange Goblin, Opeth e também várias bandas aqui da Irlanda, como Celtachor, Mael Mordha, Wreck of the Hesperus… Antes de vir para aqui, não fazia a mínima ideia que o metal era tão forte na Irlanda.



Jornal O Naniko: A maioria das pessoas com quem falei considera-o um estudioso, ou seja alguém que gosta de saber as coisas a fundo. E de facto tem-no demonstrado nesta entrevista com os seus vastos conhecimentos de metal, de futebol americano… Considera-se um homem renascentista?

MC: (risos) Homem renascentista?

Jornal O Naniko: Sim, considera-se uma pessoa que tem uma sede inesgotável de saber sempre mais e que gosta de dominar várias áreas do conhecimento?

MC: (fica pensativo) Sempre gostei de saber, de me preparar antes de fazer o que quer que seja, sempre gostei de ler, de estar informado. Por exemplo, quando era miúdo era o único que lia todas as informações e todas as falas do jogo Final Fantasy, mais ninguém tinha paciência para o fazer. E fazia-o porque gostava de saber a história, de ir à procura do porquê. Ainda hoje em dia sou assim. Com o aparecimento da internet já ninguém tem desculpa para não saber minimamente bem o que quer que seja. Eu não diria que estudo os assuntos – eu não ia propriamente de castigo para o meu quarto ler revistas de metal. Fazia-o porque gostava, porque, lá está, gostava de saber, de estar informado. E essa atitude tem-me acompanhado ao longo da vida.

Jornal O Naniko: Essa forma de estar tem sido importante na sua vida profissional?

MC: Eu diria que tem sido essencial. Então na minha área em que tudo muda a uma velocidade enorme… Na engenharia informática temos de estar sempre actualizados, sempre em cima da última jogada. Aliás, eu nem considero a informática uma engenharia. Veja o seguinte: os princípios básicos de engenharia para construir uma ponte mantêm-se praticamente os mesmos desde o tempo, vá lá, dos romanos. Claro que houve evolução, mas a base científica teve de se manter. Já na informática isso não acontece, os princípios básicos mudam, a linguagem de programação muda… Portanto tenho de estar sempre a actualizar-me.

Jornal O Naniko: Que conselho daria a alguém que esteja à procura de trabalho?

MC: Digo-lhe que não pare de aprender. É o maior erro que se pode cometer. Aqueles que saem da faculdade e que pensam que, por serem licenciados, já têm conhecimentos suficientes para trabalhar não têm hipóteses. É preciso ter a humildade suficiente para perceber que temos de ser estudantes a vida toda. Quem pára de aprender, fica obsoleto. É tão simples quanto isto.

Jornal O Naniko: Como a maioria dos Nanikos, o MC chega este ano aos 30 anos. Esse facto pesa-lhe?

MC: Não, nem por isso. Para falar a verdade nem tenho pensado muito nisso. Claro que vai ser estranho perceber que dentro de alguns meses a minha idade começa com o número 3. Talvez quando esse dia chegar pense mais sobre o assunto, mas de momento convivo bem com a ideia de que estou a chegar aos 30.

Jornal O Naniko: Estas primeiras três décadas têm sido bem vividas?

MC: Sim, acho que posso dizer que sim. Como em tudo, houve momentos bons, momentos maus, mas isso faz parte da vida.

Jornal O Naniko: Por falar em vida, já descobriu o seu sentido?

MC: Não, ainda não, acho que ainda é cedo. De qualquer modo, acho que a vida é um puzzle ao qual faltam sempre peças. Por muitos sábios e religiões que existam, ninguém pode dizer com sinceridade que tem a última peça. Ninguém sabe com cem por cento de certeza o que é anda aqui a fazer, se é que existe algum sentido para estarmos aqui. Mas acima de tudo creio que se Deus existir, então terá de ser um grande programador que criou o Universo através de um código ainda incompreensível para nós, humanos. Acredito que será a informática a desvendar os mistérios insondáveis da Criação Divina nas próximas décadas.

Jornal O Naniko: Qual foi a importância dos Nanikos nestes quase 30 anos?

MC: Foi muita, como deve calcular. Aprendi a beber como deve ser pelo garrafão, sem me babar, aprendi que tenho uma resistência fantástica ao álcool e que é possível ser um desportista de eleição e beber ao mesmo tempo, como demonstrou a equipa dos Nanikos FC, que encantou meio Fundão no início deste século. Apesar disso, acho que a equipa podia ter sido ainda melhor: o Bob Alpha defendia as bolas difíceis mas deixava entrar as fáceis; o Bojo tinha um grande remate mas nunca ajudava a defender; o Sapec era eficaz mas embirrava com o facto de a bola ser redonda; o Ucrânia era rápido mas muitas vezes corria sem sentido; o Xico tinha boa técnica mas dava sempre uma finta a mais e preferia o malabarismo à eficácia, porque estava mais preocupado em engatar fãs; o Bukowski passava bem mas atrapalhava-se com a gravata; o Marquito tinha boa visão de jogo mas era lento; o Llera tinha bom jogo aéreo mas dava demasiada sarrafada; o Bio era uma jovem promessa e dez anos depois... continua a ser uma jovem promessa. Enfim, a equipa deixava algo a desejar, apesar da vitória na Taça dos Garrafões Europeus em 2002.

Jornal O Naniko: Qual seria a música que escolheria como banda sonora dos seus 30 anos?

MC: Há tantas… (pensa durante alguns segundos) Talvez escolhesse o cover do Hallowed be thy Name, dos Iron Maiden, feito pelos Cradle of Filth. É sem dúvida das melhores músicas de metal que ouvi até hoje. (Começa a cantar) I’m waiting in my cold cell, when the light begins to chime / Reflecting on my past life and it doesn’t have much time / 'Cause at 5 O'clock they take me to the gallows pole, / The sands of time for me are running low, running low… É brutal!

A.F.: (encolhe os ombros e revira os olhos)

Jornal O Naniko: Que sonhos tem para os próximos 30 anos?

MC: (fica pensativo) Eu para já estou bem na Irlanda, mas tenho medo que isto um dia rebente, porque o crescimento aqui tem sido artificial. As empresas só vêm para cá porque o IRC é baixo e um dia isto pode mudar. Por isso, um dia gostava de ir para a Alemanha, ter lá um filho, abrir uma empresa de informática e experimentar todas as cervejas do mundo.

A.F.: (revira os olhos e encolhe os ombros)

MC: O que é? Não queres que o nosso filho nasça na Alemanha?

A.F.: O que é que isso importa? A mim tanto me dá que nasça nesta ilha como nas Berlengas. É igual!

MC: Não, não é. Na Alemanha o ar é diferente. Lá as crianças crescem fortes e saudáveis. Olha o Ucrânia. O Ucrânia só é Ucrânia de nome. Achas que se ele tivesse nascido em Kiev tinha aquele tamanho? Cá para mim ele nasceu foi em Coimbra, mais precisamente no Portugal dos Pequenitos. Por isso é que é importante que o nosso filho nasça no império. Só assim é que poderá crescer forte e vigoroso.

A.F: Sim, tens razão. Se o nosso filho ficar do tamanho do Ucrânia prefiro vendê-lo ao Circo Chen.

MC: (risos)



Jornal O Naniko: O que diz o seu fígado?

MC: (risos) Neste momento diz-me que está feliz com o que bebeu, mas que está a precisar de um absinto para assentar. O que lhe parece? Vamos a uma fada verde?

A.F.: (encolhe os ombros e revira os olhos) Oh MC! Não achas que já bebeste demais? Se bebes assim como é que queres que o nosso bebé nasça saudável e forte?

MC: Está calada. (chama o empregado) Excuse me. I want three absinthes please. Thank you. Mas voltando à sua questão, o meu fígado diz que tem gostado destes 30 anos. Diz que suportou relativamente bem os embates com o álcool, fosse cerveja, whisky, bagaço, licores… Diz também que se tem divertido, mas espera que nos próximos 30 anos os excessos sejam menos frequentes. Prefere mais qualidade alcoólica do que quantidade – se for para exagerar que seja com bom vinho ou boa cerveja. No que me diz respeito, estou completamente de acordo com ele. (sorri e afaga o fígado com a mão esquerda)

(Chegam os três absintos)

A.F.: (encolhe os ombros e revira os olhos) Eu não vou beber isto!

MC: (com um tom pedagógico) Vá, não sejas cortes! Segura lá no teu copo, vá. Temos de puxar. Vamos lá.

(Levantamos os três copos e brindamos)

MC: Então à nossa, aos nossos amigos, à nossa família, namoradas e namorados e aos Nanikos. Espero que os próximos 30 anos sejam devidamente embebidos em saúde, alegrias, sucessos, boa comida e bom álcool. À nossa!