quinta-feira, 19 de janeiro de 2006

Como eu vi passagem de ano

I

Chego à Marinha Grande às 16h30m (hora local) como estava previsto. O céu cinzento indicia que a chuva tem reservado um derradeiro acto para este dia trinta e um de Dezembro de dois mil e cinco. Porém, não sou meteorologista. Vagueio pela cidade enquanto borboletas nervosas passeiam pela minha barriga. A razão não é para menos – hoje disputa-se uma importante etapa em São Pedro de Moel. E, pelos vistos, ninguém a quer perder – os nanikos vão comparecer em massa, excepção feita a Xico-Xico por motivos do foro psicológico.
O sino avisa que são cinco horas. À medida que o tempo galopa pelos minutos acima, a minha ansiedade vai aumentando. Embebido nos meus pensamentos, apenas reparo onde estou quando choco com um senhor de meia-idade, “Desculpe, não o vi”. Olho então em redor – à minha frente está uma igreja bastante simples, cuja altura e decoração não se destacam em nada dos edifícios circunvizinhos. Porém, não sou arquitecto. Decido entrar. Lá dentro encontra-se apenas um indivíduo que, pelo à-vontade que mostra dentro da casa de Deus, deve ser ajudante do padre, ou, quiçá, o próprio padre. Avanço em direcção ao altar, o qual, bem ao jeito da arte minimalista, tão em voga nos tempos actuais, é uma parede em branco. Ajoelho-me e rogo à potência divina que guie os meus passos e ajude o meu fígado a alcançar mais uma vitória nesta etapa de final de ano. Prometo sacrificar três toiros em seu nome se tal desejo for materializado.
Quando saio do templo sagrado sinto a minha alma reciclar-se. O nervosismo parece que também foi aplacado pela força da fé. Avanço agora com passos decididos rumo ao centro da cidade. Já à entrada do museu do vidro, o meu telemóvel começa a tocar e a vibrar como um peixe fora de água. Chegou o momento – sinto um baque no coração.

II

“Então Ukrania, como é que isso vai?” Cumprimento um por um todos os nanikos. Está lá toda a gente – Mc Hammer (um ano depois! do inolvidável ano novo no Fundão), Marquito e o seu mano, Sapec, Bojo e o seu telemóvel, os irmãos rasta, Solid e Bio, Bob e “Bobina” (Inês). Noto nas suas caras alguma apreensão. A recepção também não foi a mais calorosa. É normal – há já muito tempo que não participamos numa etapa, e esta, pela adesão, ganha contornos especiais; além disso, o meu vasto historial de camisolas amarelas de há alguns anos a esta parte é um cartão de visita intimidante para quem tem pretensões à vitória final. Tenho consciência disso e aceito com toda a naturalidade a pressão que recai nestas alturas sobre os meus ombros. É portanto num misto de satisfação e nervosismo que sou acolhido no seio das hostes nanikianas.
Entro dentro do carro de Mc Hammer – um Suzuki Ignis preto, quatro pneus, um volante. “Alguém sabe no que é que consiste a etapa?”, pergunto. Mc olha-me pelo retrovisor, passa a mão pela cara, agora imberbe, e diz “Segundo ouvi dizer a etapa chama-se Melo’s – um café junto ao mar. Um passarinho disse-me que aquilo é fodido devido ao ar empestado de cloreto de sódio que em contacto com o álcool dá uma bomba do caralho. Não vai ser fácil”. Pelo ligeiro gaguejar da sua voz, pela sua condução cheia de solavancos e derrapagens, percebo que também ele está nervoso, não obstante a sua vasta experiência neste tipo de andanças. Na verdade, nestas alturas aquilo que se já conseguiu de nada vale. A prova disso está no Marquito. O capitão, cujo passado está impresso a letras de ouro na história da humanidade em particular e na história dos nanikos em geral, não pára de tremer a perna, libertando assim toda a tensão acumulada. Aposto que este clima de cortar à faca se estende igualmente aos outros carros que entretanto se perderam.
Chegámos a São Pedro de Moel. Tiramos a foto da praxe junto da placa que denota esse facto. A partir de agora cada um vai pedalar por si, numa luta titânica pela vitória. Entramos dentro da vila e estacionamos no parque reservado aos Nanikos FC. Saio do carro e respiro fundo. Sinto os membros entorpecidos, apesar da viagem ter sido curta. A noite já caiu e no céu escuro não se vislumbra uma única estrela a quem possa dirigir os meus desejos. São quase 19h. Dirigimo-nos a pé para o Melo’s por uma estrada íngreme. Do nosso lado esquerdo ouve-se o rugir espumoso do mar. Chegámos. Marquito abre a porta do bar e lá de dentro escapa-se uma baforada de fumo. Começamos a entrar um por um. Olho uma última vez para o céu velado e faço figas.

III

O bar onde acabámos de entrar pertence à outra grandiosa família Melo. Dona de vastos latifúndios no Alentejo profundo, tudo o vento levou com as subsequentes nacionalizações do pós-25 de Abril. Num acto de último recurso, o senhor António Maria de Melo juntou as suas últimas posses e abandonou a planície alentejana juntamente com a família. Após ter andado por meio país, fixou-se definitivamente em São Pedro de Moel, onde abriu o seu Melo’s bar.
E é aqui que nos encontramos, neste local rico em história onde o antigo se cruza harmoniosamente com o moderno. O espaço é constituído por várias mesas, cadeiras, uma televisão, casas de banho e um balcão, atrás do qual trabalham eficientemente duas empregadas. Todos os lugares estão ocupados por ruidosos clientes que fumam e bebem alegremente, criando um ambiente festivo e de grande colorido. Estão reunidas, portanto, todas as condições para uma prática alcóolico-recreativa ao mais alto nível. O “chefe Melo”, como carinhosamente lhe chamamos, aproxima-se da nossa mesa. “Minis para todos, por favor”, dizemos a uma só voz. Porém, a sua surdez leva-o a cometer um erro que não é admissível em grandes palcos como aquele – trouxe bicas em vez do precioso líquido dourado. Esta falsa partida deixa-me ainda mais nervoso. Mas eis que finalmente a cevada chega em fartura. Começamos a compita de forma animada. Ao primeiro golo, não pude deixar de soltar uma exclamação quase orgásmica. Há quanto tempo não lhe sentia o sabor, meu Deus!. O agridoce da cerveja e a sensação de ouvir cada um dos neurónios a implodir, quais estalinhos de Carnaval, é daquelas coisas que me faz agarrar a vida com as duas mãos (as duas não, porque uma está sempre a segurar brava e firmemente a mini).
A etapa decorre a um ritmo equilibrado. Ninguém se destaca do pelotão e já vamos para a quinta rodada. “Obrigado chefe Melo”. É então que Solid quebra o silêncio com esta tirada que ficará eternamente gravada na memória de todos aqueles que estiveram presentes: “Segundo ouvi dizer, só podemos levantar os bilhetes antes das dez ou depois das dez”. Será que já está bêbado? Será que Solid pôs-se em fuga rumo a uma noite de glória? Olhamos uns para os outros. Quem vai tentar apanhar o fugitivo? Quando Mc já se preparava para pedir um bagaço, percebemos que afinal se tratou apenas de uma calinada por parte de um Solid ainda sóbrio. Deprimente.
Chegamos à oitava rodada e ninguém se destacou. A etapa Melo’s caminha rapidamente para o seu termo, não se confirmando os meus piores receios. Agora fazemos uma pausa para jantar e comemorarmos a entrada no novo e esplendoroso ano de dois mil e seis depois da vinda de nosso senhor Jesus Cristo aqui abaixo.

IV

Estamos a fazer o caminho de regresso rumo ao restaurante gentilmente cedido à comitiva nanikiana pela Associação de Hotelaria de São Pedro. Já quase no largo, Sapec arrisca a seguinte analogia “Isto faz-me lembrar Manteigas”. Será desta que se confirma uma fuga? Estará Sapec ébrio ao ponto de não perceber que Manteigas não tem mar? Será que vai agarrar a amarela? Será… Mas não: tratou-se de mais uma calinada, esta bem ao jeito “sapequiano”.
Provavelmente farto deste estado de coisas, deste fazes que andas mas não andas, Bio explicou com um esteticamente bonito repuxo de vomitado o porquê dos Nanikos FC terem apostado nesta esperança que é, na minha opinião, já uma certeza. Quando tudo parecia terminar num sensaborão empate, eis que Nuno, conhecido no mundo nanikiano por Bio, iluminou a noite chuvosa de São Pedro de Moel com a sua fuga. É com momentos destes, só ao alcance de predestinados, que se constroem as lendas. Marquito, que tem posto tanto empenho na formação de novos talentos, não conseguiu conter uma lágrima de orgulho ao ver o resultado do seu persistente esforço ali espelhado, naquela poça de vomitado. “És grande miúdo, és grande”, disse com a voz tomada de emoção. Também Solid, seu irmão mais velho que tem perseguido tantas vezes a camisola amarela, a qual lhe escapa constantemente, não deixou de felicitar Bio, espalhando comovidamente aos quatro ventos: “É meu irmão! É meu irmão!”.
Perante tal fuga, eu, Mc Hammer, Sapec e Marquito, tentámos em conjunto apanhar Bio na sua gloriosa cavalgada. Para isso recorremos ao tabaco espanhol gentilmente cedido por condutores conscientes de que não se deve fumar enquanto se conduz e pelos azeiteiros de Pombal. Conseguimos encurtar a distância para dois minutos. Manifestamente pouco para parar o imparável Bio.

V

A meia-noite aproxima-se. Apesar do frio e do vento, dirigimo-nos para a beira-mar, por motivos que me são totalmente alheios. Os deuses lá do alto baptizam a saída do espantoso ano de dois mil e cinco e a entrada no promissor dois mil e seis com chuva divina. Oxalá dê sorte. De garrafa de champagne na mão, distribuo as doze passas pelo pessoal. Faltam dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um… Os foguetes estoiram no ar num espectáculo pirotécnico assombroso. Todo o ambiente se ilumina, criando uma atmosfera mítica e mística. Qual Funchal qual quê! O fogo de artifício desta vila devia abrir os telejornais de todo o mundo, de tão deslumbrante que foi. Feliz ano novo para a família, amigos, amigas, conhecidos e desconhecidos! Percebendo a felicidade terrena, os deuses intensificam a chuva, obrigando-nos a correr para debaixo de uma varanda. Cumprimento com “felizes entradas” todas as pessoas que aí se encontram.
É de facto um início de ano inesquecível que será recordado pelas gerações vindouras como “o ano novo”, aquele ano novo de 2005 para 2006 em São Pedro de Moel…. aah… quem me dera lá ter estado com aqueles gandas malucos!”.

VI

Encharcados de água e champagne, partimos para a Party Zone da Antena 3. Lá dentro, rapidamente percebo que a conjuntura não é a mais favorável para apanhar o Bio – muita gente, muito barulho… Decido ficar pela esplanada interior juntamente com o Mc, onde iniciamos uma profícua discussão sobre quais serão os melhores prostíbulos da Cova da Beira. Gosto sempre de uma saudável troca de ideias. Também se falou de bola, como é óbvio. Entretanto bebo, como faço aliás todas as noites antes de me deitar, um absinto. Volto algumas vezes à pista para tomar pulso ao ambiente. Bio continua em alta, dançando como se não houvesse amanhã.
Por volta das 5h30m começamos a sair. Dirigimo-nos, cansados mas felizes, para o hotel de cinco estrelas, gentilmente cedido aos Nanikos FC pela autarquia local. Na discoteca ficou, claro está, o inevitável Bio. A sua noite/manhã acabou com o nascer do sol. Ao ver a estrela despertar para mais um dia de trabalho, provavelmente deve ter entrado nas suas cogitações a ideia de que após aquela noite coroada de êxito o seu estatuto dentro dos Nanikos FC subiu exponencialmente e que, portanto, este novo ano que agora se inicia terá de ser, necessariamente, o da sua afirmação. Boa sorte, miúdo.
Em sentido inverso esteve Bojo. Na manhã seguinte era evidente o seu rosto de desalento. Perante tamanho fracasso nesta etapa, onde tinha legítimas esperanças de chegar ao triunfo, disse, de coração na boca, que “para o ano fico na cama a dormir – estou farto de perder”. Fica aqui a minha palavra de conforto para ele. É na adversidade que se vê o verdadeiro carácter dos campeões. Só um reparo: quando se passa metade da noite ao telemóvel é complicado conseguir o que quer que seja. O exigente mundo alcóolico-recreativo não se compadece com faltas de empenho.
Outra desilusão foi Jorge, mais uma esperança nanikiana. O seu fracassso ganha porém contornos quase escandalosos se tivermos em linha de conta que o seu irmão é tão-só Marquito – o homem que se espojou alegremente na calçada da rua da Cale, o homem que tocou inesquecíveis guitarradas na Santa, o homem que tomou banho em fontes públicas, o homem… Será que o velho capitão não está a passar convenientemente os seus inestimáveis ensinamentos ao irmão mais novo? Ou será que é este quem não quer aprender?
Estas questões devem ser quanto antes respondidas, porque se trata, afinal de contas, de dar continuidade ao projecto iniciado por todos nós no já longínquo século XX. Motivos de reflexão, portanto, para a instituição Nanikos Futebol Clube

VII

Chegou ao fim esta crónica, onde procurei sempre relatar os factos com a maior veracidade que me é possível, dando a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Resta-me despedir com os votos de um excelente dois mil e seis para todos os nanikos e para todos os que gostam de nós. Quero também tornar público o meu desejo, que penso que é partilhado por todos, que, independentemente das distâncias que nos separam, façamos um esforço para nos encontrarmos mais vezes este ano.
Um forte abraço e força aí pessoal!

4 comentários:

Marco disse...

Qual Vasco Pulido Valente qual que... já te estou a ver como dono das crónicas no público!! [[ ]]

Shiva disse...

Esqueci-me apenas de um pormenor. O Bio ao vencer a camisola a amarela disse na manhã seguinte já envergando orgulhosamente a camisola amarela: "Agora só quero ir para casa e ir um filme no ecrã ftp da minha televisão". É com esta humildade e sobriedade que se constroem os ganhadores.

Qual Público qual quê! Ao escrever para este grande blog, sinto que já atingi o auge, porque depois dos Nanikos só Deus!

Psynoia disse...

epá veem-se me as lagrimas de alegria ao ler tão eloquente transcrição desses grandiosos actos que todos presenciamos :_)
Bravo Ukrania a amarela será sempre tua. []

Joao Martinho disse...

ao ler esta crónica ao potente som de antónio variações ("só eu sei que sou erva...") até fico com saudades dos bons velhos tempos onde havia uma etapa por fim de semana. Enfim, os tempos mudam e as pessoas também mas se possível porque não mais umas etapas de fim de semana por portugal fora. Uma espécia de Volta a Portugal Nanikiana espalhando o perfume e o vómito pelos 4 cantos deste país à beira mar plantado. Ou quem sabe uma etapa rainha no Fundão por alturas da abertura do Verão. E ainda há o projecto 24 Horas Policarpo que nunca passou da minha cabeça.