segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Catarina 'Ginjas' (1987-2009)

A garrafa estava ali, à mão de semear. A cor quente, rubi, fascinava-a. Agarrou-a pelo gargalo e ficou a olhar para as bolinhas suspensas pela agitação. Muito devagarinho, abriu-a. Deu um golo a medo. O sabor doce surpreendeu-a. Lambeu os lábios gulosos e de um fôlego só despejou a ginjinha caseira do tio para espanto da família que celebrava mais uma consoada. Como sempre acontece no Fundão, este pequeno apontamento da vida doméstica ganhou asas e viajou por ouvidos e bocas indiscretas. Quando regressou à jovem de 12 anos, trazia a alcunha de Ginjas para viver paredes meias com a Catarina até ao fim da vida. Amen.

Nascida e criada num lar burguês, onde nem sequer faltava o piano de cauda, esse acontecimento foi como o grito de Ipiranga da jovem, cansada que estava dos ditames ditatoriais dos pais que cerceavam as suas liberdades com regras para tudo e nada. Desde tenra idade, foi educada para seguir os passos da mãe, camareira na corte de Alpedrinha. Catarina, no entanto, embriagou o destino à força de ginjas e de todas as bebidas de teor alcóolico que encontrava, primeiro, no bar da sala de estar, e, a partir dos 13 anos, nas tascas pouco recomendáveis da cidade. O seu comportamento boémio fez fama entre bêbados e pedintes, que lhe tentavam sacar alguns cobres nas efusivas noites etílicas, e também entre poetas e apaixonados, que lhe dedicavam pirosos sonetos de amor.

Escandalizados com a estroinice da filha, os progenitores tentaram levá-la à força para o Convento do Fundão, então sob a tutela da Ordem das Sagradas Virgens de Cristo. Mas era tarde de mais. Com a rebeldia da idade a ferver-lhe no sangue, fugiu de casa para não mais voltar. Dos 14 aos 17 anos viveu num quarto mal amanhado na Rua Marquês de Pombal, juntamente com ocupas anárquicos e o respectivo cão. Para se sustentar, saltitou do Galinha Gorda para o Minipreço, passando pelo café Sky, antro de velhos ferroviários e de bêbados imberbes. Ao entardecer, iniciava a demanda pelos trilhos vindimados de Baco, numa viagem que se estendia noite fora entre quelhas e ruelas degradadas. Numa madrugada de neve, com os passos entorpecidos pelo álcool, caiu desamparada na calçada da Rua da Cale. Ironia do destino, foi essa queda que lhe permitiu sair do poço onde se afundava dia após dia. Quiseram as estrelas que o brilhante estudante de informática, Marrusso, passasse por ali a caminho de casa. Ao vê-la estendida, levou-lhe de imediato aos lábios o cantil de bagaço velho que trazia sempre consigo para o aquecer durante o rigoroso Inverno fundanense. De imediato, os olhos de Catarina luziram como dois braseiros.

Do calor do bagaço ao calor da paixão foi um pequeno golo de ginja. Pode-se afirmar sem exagero que Marrusso lhe deu uma segunda vida. Catarina regenerou-se, reconciliou-se com o mundo e regressou à escola. A ideia era concluir os estudos secundários que abandonara e depois seguir para a Universidade. No entanto, a traição de Marrusso com Joana, uma abastada industrial de férteis ambientais, trocou-lhe os planos. Cega de raiva e ciúmes, assaltou um carro e, embrulhada na escuridão da noite, passou a ferro a sua rival, que ficou espalmada como um pacote de leite ao longo da Avenida da Liberdade.

Furioso com a morte da principal financiadora da sua causa, o General revolucionário Bojo Gonzalez exigiu a captura imediata do responsável pela morte de Joana. Certa de que era apenas uma questão de tempo até ser executada, Catarina fugiu para Évora. Foi aí que voltou à escola para concluir os estudos secundários e fazer o curso de arquitectura. Dessa sua estadia de quatro anos no Alentejo pouco se sabe. Os biógrafos inclinam-se para a hipótese de que terá levado uma vida regrada e com poucos relacionamentos fora do ambiente académico.

Terminados os estudos e com o apaziguamento da situação política, Catarina decidiu pôr termo ao seu exílio. Assim que soube do seu regresso, o Marechal MC Martinho fez questão de a receber pessoalmente no seu palácio, em Castelo Novo. Não é difícil perceber a atenção que dispensou à jovem. Na verdade, dera-lhe uma ajuda involuntária ao atropelar a fonte de rendimento de Bojo Gonzalez, com quem sustentava uma guerra sanguinária em virtude das diferenças ideológicas irreconciliáveis que perfilhavam e que queriam implantar na cidade. A empatia que se criou entre ambos, motivou sucessivos encontros em que debatiam sobretudo a reconstrução do Fundão, então uma amálgama de escombros e cinzas.

Em pouco tempo, Catarina tornou-se uma acérrima defensora das políticas ultraliberais e também uma grande admiradora da cultura norte-americana. A sua beleza e ingenuidade agradaram ao astuto MC Martinho, que a elevou a arquitecta oficial do regime. Quando as forças do General Bojo Gonzalez fossem derrotadas, Catarina Ginjas teria a responsabilidade de projectar o novo Fundão à imagem e semelhança dos apetites imperialistas e grandiosos do Marechal. Entusiasmada com o rumo que a sua vida levava, a jovem, então com 21 anos, empenhou-se durante 9 meses na criação de uma maqueta de 10 metros de comprimento por 2 de altura cheia de fontes e fontanários e edifícios ciclópicos. O que mais impressionava na sua obra era a Acrópole, monumento indescritível de mármore branco, que seria construído como homenagem delirante do regime ao grande helenista Vítor Punk. Com as suas colunas dóricas, jónicas e coríntias de 50 metros de altura, dominaria os ares da Cova da Beira; com a sua imponência balofa esmagaria tudo em redor.

A tormenta, no entanto, voltou a abater-se sobre Catarina quando soube da morte (mal explicada) de Emanuel Marrusso, na tarde de 4 de Setembro de 2009. Apesar de não o ver há vários anos, a notícia deixou-a destroçada, lançando-a de novo no caos alcóolico. Pelos documentos entretanto descobertos, sabe-se que o Marechal lhe escreveu várias vezes a pedir-lhe prudência e discrição na sua conduta, preocupado que estava em lançar um ataque furtivo contra as forças do General Bojo Gonzalez. De pouco valeu. Na madrugada de 12 de Setembro, a arquitecta terá entrado em casa completamente ébria e tropeçado na sua maquete. Colunatas, pórticos, cornijas, frisos e brasões desmoronaram-se sobre si, acabando esmagada por um sonho de gesso e contraplacado. Tinha 22 anos e ainda não deixara descendência.

Ainda hoje continua a causar estranheza a forma fria como MC Martinho reagiu à morte de Catarina. A sua atitude tem levado vários biógrafos a sustentar a hipótese de que o Marechal terá dado ordens para a executarem com o intuito de não comprometer o seu ataque militar, do qual ela era conhecedora. No entanto, a verdadeira razão continua por desvendar.

Foi a 13 de Setembro de 2009, debaixo de um ambiente crispado pelo luto e pelo ar belicoso que se respirava na cidade, que Catarina 'Ginjas' foi conduzida à sua última morada. Apesar de tudo e num derradeiro gesto de humanismo, MC Martinho ordenou que o seu corpo fosse enterrado no exacto local onde projectara a construção da Acrópole. Durante três dias, o Fundão chorou em conjunto a partida da mais promissora e brilhante arquitecta que alguma vez vira. Passado o nojo oficial, as bombas começaram a cair.

Se fosse viva, Catarina 'Ginjas' faria hoje 23 anos. O jornal O Naniko não se esquece da tua memória e dedica-te este texto na certeza de que o estás a ler na cidade ideal que um dia criaste. Muitos parabéns, Catarina 'Ginjas'.

6 comentários:

xico ao quadrado disse...

Andas fascinado pela morte rui?

Shiva disse...

Pergunta ao narrador. Quem é o Rui?

xico ao quadrado disse...

O Rui é um tipo sem graça.

xico ao quadrado disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Shiva disse...

Bem me parecia. O Xico ao quadrado tem piada ao cubo?

xico ao quadrado disse...

Tem outra coisa....os pés!